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João Abel Manta nasce em 1928, em Lisboa. Filho de pais artistas plásticos e professores nas escolas técnicas e profissionais do Estado Novo, teve uma educação liberal e a possibilidade de viajar pela Europa desde criança, aquilo que em tempos descreveu como “uma infância extraordinária”. O pai, o pintor Abel Manta, reconhecido retratista, era oriundo de Gouveia. Protegido por uma família abastada, estudou em Lisboa na primeira década do século XX, na Escola de Belas Artes. Seria no círculo artístico da capital que conheceria a futura mulher, Maria Clementina Carneiro de Moura, também pintora. Filho único, João Abel Manta cresce numa casa de Santo Amaro de Oeiras (entretanto demolida), convivendo com alguns dos intelectuais mais importantes da época que se tornam amigos de seus pais. Próximo da família é, por exemplo, o romancista Aquilino Ribeiro, de quem o pai do futuro arquitecto pinta conhecidos retratos. O próprio João Abel Manta ilustrará mais tarde alguns dos seus romances, casos de A Casa Grande de Romarigães (1957) ou o texto O Esconjuro (1971), já depois da morte do escritor. A sua mãe fora aluna dilecta de Columbano, que lhe reconhecia inúmeras qualidades artísticas. 

Os pais sentem uma especial atracção por Paris, onde Abel Manta vivera logo depois de se diplomar nas Belas Artes e antes de o filho nascer. As viagens em família têm como destino privilegiado Itália, começando por Génova, mas terminando, invariavelmente, na capital francesa. Estendem-se também por Espanha, Inglaterra e Holanda, causando forte impressão no jovem Abel Manta. O gosto pelo desenho vem-lhe dos dias passados na Académie de la Grande Chaumière quando tinha cerca de oito anos. De uma dessas viagens – provavelmente a Pompeia – guarda uma fotografia com a sua mãe, captada nas ruínas de uma velha domusromana. Mais tarde, essa imagem tê-lo-á encorajado a inscrever-se em arquitectura. 

Na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa é marcado por Cristino da Silva. Apesar da sua personalidade conservadora e autoritária, reconhece a importância que terá na sua formação. O velho mestre indicará posteriormente João Abel Manta e o seu futuro sócio Alberto Pessoa para projectos de arquitectura que significativamente se revelarão essenciais no plano da produção moderna portuguesa. Será igualmente figura habitual nas suas obras, levando novas gerações de estudantes a visitá-las. É provável que já na escola antecipasse as capacidades criativas do futuro arquitecto.

João Abel Manta termina o curso em 1951, onde apresenta, como Concurso para a Obtenção do Diploma de Arquitecto, um projecto para um centro comercial na Ajuda. Da formação académica retira essencialmente uma ideia de “disciplina” e a prática de um “desenho rigoroso”. A metodologia reflectir-se-á enquanto pintor, designer, artista gráfico e cartoonista, actividades que se tornarão dominantes a partir do final da década de 1950. Antes disso, contudo, trabalha sozinho ou no escritório lisboeta de Alberto Pessoa, que conhece através de Francisco Keil do Amaral. Embora passageira, a sua actividade como arquitecto lega à história portuguesa contemporânea alguns dos seus verdadeiros monumentos modernos, como se verá.

Não é fácil reconstruir a sua vida de arquitecto. Na caixa com a identificação “G” que guarda no seu apartamento (João Abel Manta arquiva a sua vida profissional em caixas de cartão), encontra-se um dos seus raros testemunhos curriculares. Começa assim: “A minha actividade como arquitecto e urbanista funcionou em dois ateliers. Um com o meu colega Alberto Pessoa (já falecido), para projectos complicados, planos de urbanização, concursos, etc. Outro, sozinho, para projectos mais simples: moradias, edifícios sem integração urbanística, etc.” Admite mais à frente ser-lhe “difícil […] indicar, em relação aos ateliers, a origem destas obras”. Tem então 80 anos e a lista faz-se de memória. É a partir do que enumera que se consegue refazer um itinerário. A maioria são prédios de rendimento em Lisboa (Calçada das Necessidades, Rua Ricardo Espírito Santo, Rua Antero de Quental, Rua D. Francisco Manuel de Melo e zona de Belém). Acrescenta-se, a este conjunto, o edifício da Rua Nova do Loureiro (1956-1959, alterado na década de 1980) onde actualmente reside, ao Bairro Alto, anteriormente ocupado com um dos ateliers dos pais. As casas dispersam-se entre Cascais (três moradias), Santo Amaro de Oeiras e Costa de Caparica. A última foi sua residência de Verão. Nesta, o paisagismo deve-se a Gonçalo Ribeiro Teles, que consigo colabora no escritório. Seguem-se planos de urbanização, nem todos aplicados (Agualva-Cacém; Peniche, não realizado; Av. Liberdade, não concluído), e os escritórios da Avenida 24 de Julho (Lisboa). Entre os equipamentos, destaque-se o silo-auto no Porto, uma Casa de Chá, em Peniche, a dependência da Caixa Geral de Depósitos, em Mafra, e a Piscina Municipal do Areeiro, em Lisboa. Dos diversos concursos realizados e não premiados, recorda essencialmente o do Casino do Estoril, que acabaria por perder para a dupla Filipe Figueiredo/José Segurado. Um projecto de um hotel para Gouveia – não listado – encontra-se entre o material recolhido nessa mesma caixa. Com Pessoa, ainda, fará um pequeno hotel moderno no fecho da Avenida Infante Santo, fronteiro à marginal, de que parece então esquecer-se. 

É no início desta listagem, que então elabora, que surgem os seus principais projectos. Entre estes, salienta-se o conjunto habitacional da Avenida Infante Santo, em Lisboa (1955-1959), que indica como sendo desenhado por si e por Alberto Pessoa ou a Associação Académica de Coimbra (1954-1961), também resultado da mesma co-autoria. Projectado sem recorrer a qualquer parceria, será o magnífico bloco modernista implantado no coração do Bairro dos Olivais Norte (1960), erguido sobre uma plataforma elevada e com pilotis.  

É com Alberto Pessoa que João Abel Manta ganha maturidade enquanto arquitecto. Oriundo de Coimbra e nove anos mais velho, Alberto Pessoa era já um profissional reputado quando se dá a parceria. Evidenciava-se pelos seus méritos técnicos e por imprimir à sua arquitectura uma indelével marca funcionalista. A sua militância comunista dá-lhe uma focalização política muito específica. Talvez não fosse exactamente um homem de “cultura arquitectónica”, e é nesse sentido que Manta reconhece ter dado ao escritório, um “ar mais romântico” ou artístico. Era contudo uma personagem que se movia bem entre os diversos extractos do Estado Novo, como comprova a sua actividade profissional.  Trabalhando com Cristino da Silva na Comissão Administrativa para as obras da Cidade Universitária de Coimbra, realiza igualmente projectos com Keil do Amaral e mantém escritório com Abel Manta. Este integra oatelier logo no arranque dos anos de 1950, permanecendo pelo menos até à constituição final da equipa que fará a sede da Fundação Calouste Gulbenkian (Pessoa, Ruy Athouguia e Pedro Cid). O escritório Pessoa/Manta resumia-se aos dois arquitectos, dois desenhadores e dois colaboradores da área da engenharia, entre os quais Ribeiro Teles, já mencionado. Os relacionamentos de Alberto Pessoa devem ter valido bastante na angariação de trabalho. Deve-se a Cristino da Silva a encomenda do complexo da Associação Académica. O edifício – que Manta assume como dos projectos mais interessantes em que participou – torna-se um exemplo da integração das artes. Exercita aqui também a sua mestria enquanto artista plástico, desenhando os painéis da fachada principal, bem como o de azulejos que se encontra no jardim interior. As entidades oficiais sugerem artistas como Jorge Barradas. Mas, segundo estudos de Nuno Rosmaninho ou de José António Bandeirinha, tudo indica para a insistência de Alberto Pessoa junto do então Ministro das Obras Públicas, Arantes e Oliveira, no sentido de que as intervenções artísticas sejam entregues a Manta. A sua marca irá tornar este conjunto um paradigma deste tipo de operações. O treino enquanto arquitecto é então decisivo. 

O seu afastamento da arquitectura faz-se progressivamente. Há um desencanto profundo com uma produção arquitectónica que apelida de demasiado “geométrica” e “pouco criativa”. A arquitectura moderna realizada em Portugal está, na sua opinião, distante da praticada por “mestres notáveis”, onde inclui Le Corbusier ou Louis Kahn. Nada, como diz, se equipara à Unidade de Habitação de Marselha. Dentro do espectro seguido pelos portugueses, que Manta aponta como filiado na “rigidez” de Mies van der Rohe, alguma arquitectura do Porto surge-lhe como interessante. A sua admiração pelos arquitectos norte-americanos cresce neste anos. Data também deste período a sua descoberta de Londres, onde chega a manter casa. O mundo das artes está então a mudar. Paris pós-André Malraux – como afirma – não lhe interessa tanto como a Paris boémia que conhecera das estadias com os pais. Na década de 1960, aliciado por alguns jornais lisboetas, caso do Diário de Notícias, para os quais vai trabalhando em paralelo na área da ilustração, deixa praticamente de exercer arquitectura. José Cardoso Pires, mais tarde director-adjunto do Diário de Lisboa, é um dos responsáveis pela mudança. Escreverá três textos sobre Manta. Num, publicado no rescaldo da Revolução, em o jornal, declara: “Raros antifascistas-de-antes-do-25-de-Abril actuaram plasticamente na intervenção política como João Abel.” São dele as ilustrações do Dinossauro Excelentíssimo, de 1972, de que Cardoso Pires é autor, uma efabulação sobre a vida do ditador recém-falecido e que marca a cena política do marcelismo. A sua obra estende-se agora à cenografia, com destaque para A Relíquia de Eça de Queirós (de quem Manta é admirador confesso) estreada em 1970 no Teatro Maria Matos, com encenação de Artur Ramos e adaptação de Sttau Monteiro, do mesmo ano (também com o mesmo encenador), são os cenários de O processo, de Kafka, apresentado no teatro Villaret, por exemplo; à tapeçaria (Fundação Calouste Gulbenkian, c.1969); à azulejaria (painéis da Avenida Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1970-1972, colocados em 1982); passando pelo desenho de calçadas (Praça dos Restauradores, Lisboa). Mas é na ilustração que a sua crítica à sociedade estado-novista e a um regime em fim de época se destaca. Em 1972, satiriza a profissão de arquitecto através de um cartoon que retrata a construção “acotovelada” do Algarve. 

Como muito bem percebe Cardoso Pires, em Abel Manta a intervenção política consegue-se de modo mais contundente através do cartoon. A visão mordaz de um país que transita da ditadura para um regime democrático, transforma-se na visão de uma geração anti-fascista. A arquitectura permanece num plano menos claro. Encontra no Jornal de Letras, Artes e Ideias, fundado em 1981, um fórum de intervenção. Actualmente, é na pintura que melhor se manifesta, como prova a exposição montada no Palácio Galveias, em Lisboa, em 2009. Os arquitectos, contudo, agradecem-lhe a capa que desenha para L’Architecture d’aujourd’huique, em 1976, promove internacionalmente, pela primeira vez e em bloco, a produção portuguesa. Nessa famosa ilustração, as paredes brancas sobre o fundo azul e um povo arcaico definem, por si só, a arquitectura de um país. Tratando-se de um homem da geração pós-I Congresso Nacional de Arquitectura, de 1948, a severa crítica que aponta ao moderno praticado em Portugal pode ser hoje considerada excepcional. Ao tempo, demonstra uma coragem e independência singulares.|

 

* com Ricardo Lima.

 

 

 

JOÃO ABEL MANTA EM LUANDA

 

João Abel Manta é o autor do painel de azulejos padrão que envolve a escadaria em caracol do Hotel Presidente. A encomenda tem aparentemente a marca de Eduardo Anahory, que terá sido responsável pelo design de interiores desta estrutura hoteleira localizada na marginal de Luanda. O edifício, inaugurado no início da década de 1970, é da autoria de José António Campino, arquitecto luso-angolano, oriundo da vila da Sertã e falecido em 1997. O painel de Luanda insere-se na mesma série do extraordinário muro de revestimento azulejar da Av. Calouste Gulbenkian, em Lisboa, de que terá sido ensaio preparatório. Os azulejos foram fabricados em Portugal, talvez na fábrica de cerâmica Constância, de onde são provenientes os que compõem o monumental painel lisboeta. A sua composição sugere uma estrutura geométrica e abstracta. Na época, foi produzida uma maqueta para ensaio da montagem. Mas, o painel luandense foi pensado para que pudesse ser montado aleatoriamente, pelos operários da obra, sem a orientação de um desenho específico. A cor predominante é o azul cobalto. 

A presença de três arquitectos como Abel Manta, Anahory e Campino no mesmo projecto de arquitectura contribuiu, sem dúvida, para tornar este edifício angolano, uma peça patrimonial notável no quadro internacional do Movimento Moderno tardio, reflectindo um investimento qualitativo invulgar. Na perspectiva da integração das artes, o painel de Manta representa uma intervenção exemplar, não se destacando da restante arquitectura e todavia marcando a singularidade do espaço onde se insere. É uma peça abstrata e gráfica, nitidamente late modern. 

Até hoje, João Abel Manta nunca visitou Angola.


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